Do coração e outros corações

Do coração e outros corações

sexta-feira, 26 de abril de 2013

A era do vazio, do crime, das drogas ..


Espaço, dor e desalento

Por Giovanna Bartucci | Para o Valor, de São Paulo
Aline Massuca/Valor
Birman: "O sujeito contemporâneo ganhou, como resultado das transformações às quais aludo no livro, configurações que não correspondem mais às descritas por Freud"
Com mais de 15 livros publicados, uma das características mais importantes do trabalho ensaístico do professor e psicanalista carioca Joel Birman é a de confrontar a psicanálise com o seu tempo. Assim, as teorias freudiana e lacaniana, fundamentalmente, saem dos consultórios para visitar cinemas, shoppings, academias de ginástica, consultórios médicos, cidades em conflito, acidentes de percurso, em suma, o mundo onde vivemos. Nessa mirada, o que o pesquisador encontrou?
"Da modernidade à atualidade, algo de fundamental aconteceu nas categorias constitutivas do sujeito, redirecionando as linhas de força de seu mal-estar", afirma. Recém-lançado, seu novo livro, "O Sujeito na Contemporaneidade - Espaço, Dor e Desalento na Atualidade", é a reunião de suas reflexões acerca das transformações que tiveram curso no período da modernidade à atualidade. Seu objetivo foi o de empreender uma interpretação desse percurso, no registro do sujeito.
O que caracteriza esse ensaio, porém, é o fato de que o autor subverte as coordenadas dos sujeitos - termo cunhado na modernidade, vale lembrar, que implica características de interioridade, reflexividade e relação com o outro (objeto) - de "assimilação" de suas experiências. Se, anteriormente, essas foram pautadas nas categorias de tempo e sua relação com o espaço, no sofrimento e no desamparo, hoje, sugere o psicanalista, o que prevalece é a dominância da categoria de espaço sobre a de tempo, da experiência da dor sobre a do sofrimento e a do desalento sobre a do desamparo.
E mais: Birman entende que o sujeito contemporâneo vive um vazio que preenche com o que lhe for possível, uma vez que já não lança mão de sua capacidade de pensamento e elaboração simbólica para dar conta de suas experiências de vida, de seu sofrimento ou, como propõe, de sua dor, mas responde às demandas pessoais e sociais por meio de "patologias da ação", tais como a "drogadição", as compulsões alimentares e, ainda, o exercício da violência.
"Penso que a experiência contemporânea do neoliberalismo transformou a violência em crime", diz o psicanalista
Membro de honra do Espace Analytique, em Paris, e do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desde 1996, e pesquisador nos programas de pós-graduação tanto na UFRJ como no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Birman falou ao Valor, por telefone, sobre as novas formas de subjetivação na contemporaneidade, o incremento mundial da violência e a importância da psicanálise na atualidade, entre outros assuntos.
Valor: Seria correto dizer que este trabalho é a condensação de mais de 15 anos de pesquisa e publicações redigido, agora, tanto para o especialista quanto para o grande público?
Birman: Sim, penso que sim. Encaro esse novo livro como um ponto de chegada de um caminho que iniciei com a publicação de "O Mal-Estar na Atualidade" [Civilização Brasileira], em 1999, em que o que começou a ficar mais em pauta foi a tentativa de conjugar a leitura psicanalítica de certos acontecimentos do contemporâneo à de outros saberes, como a filosofia, a história, as ciências sociais. Meu objetivo é o de pensar a atualidade a partir de um problema-chave na tradição psicanalítica, desde Freud: a questão do mal-estar. Isso porque, de uma perspectiva histórica, a problemática do mal-estar foi - e continua sendo - um fenômeno-limite para pensar a relação sujeito-mundo na ordem social. Ou seja, como um indicativo de uma espécie de dissonância ou tensão, na medida em que os imperativos da modernidade colocaram uma série de impasses para a experiência subjetiva. O incremento das perturbações psíquicas, da violência e da criminalidade, na modernidade, tudo o que na tradição sociológica se traduziu como o estudo de patologias sociais, entram no escopo do que Freud caracterizou como "mal-estar". Então, o que está em jogo nesse percurso que vai do "Mal-Estar na Atualidade" até esse "Sujeito na Contemporaneidade", passando por, principalmente, dois outros livros, "Arquivos do Mal-Estar e da Resistência" [Civilização Brasileira, 2006] e "Cadernos Sobre o Mal" [Civilização Brasileira, 2009], é a possibilidade de refletir sobre o campo da contemporaneidade a partir do pressuposto de que, hoje, as coordenadas da experiência de subjetivação não são exatamente as mesmas que existiam na modernidade.
Valor: De que forma o senhor diferenciaria, então, a experiência de subjetivação na atualidade das formas de experiência do mal-estar na época de Freud?
Birman: Para que possamos caracterizar o mal-estar na contemporaneidade, proponho que há uma ênfase na espacialização da experiência em oposição a uma reflexão sobre o espaço ligada a uma ideia de tempo, isto é, o espaço passa a ganhar mais peso na experiência subjetiva do que o tempo. Um segundo aspecto é um incremento da experiência de dor no lugar da de sofrimento, e, terceiro, uma intensificação da experiência de desalento, presente na atualidade, em oposição àquilo que Freud chamava de desamparo.
Valor: No que diz respeito às patologias sociais, o senhor considera que houve um aumento da violência tanto no Brasil quanto no exterior, nas últimas décadas? Ao que atribui isso?
Birman: Penso que a experiência contemporânea do neoliberalismo transformou a violência em crime. Há aumento da violência, sim, e as pesquisas no campo das ciências sociais mostram isso. A sociedade de consumo é mais violenta do que a ordem social anterior; as transformações no mundo do trabalho, no mundo globalizado e liberal, que lançam pessoas ao desemprego e fragmentam os processos de trabalho, geram novas formas de "morte social", digamos assim, que se traduzem em perda de espaço de reconhecimento simbólico, social e psíquico, mantendo-as na condição de "mortas-vivas". Nessa medida, a forma que elas têm de buscar esse importante reconhecimento é pela violência, no sentido de querer dizer algo e de esperar que o mundo escute as suas demandas. A maneira pela qual o sistema lida com essa violência é a de transformá-la em uma espécie de intenção criminal, ampliando, assim, o conceito de crime. A política da "tolerância zero", como começou a ser aplicada nos anos 1980 pelo prefeito de Nova York, Rudy Giuliani, e acabou se transformando em modelo internacional, é a política de uma espécie de surdez àquilo que é enunciado pela violência, transformando a violência em crime. De forma que há um aumento enorme do encarceramento, tanto no Brasil quanto no exterior, inchando e inflacionando o sistema prisional. Essa é uma tese que muitos criminologistas sustentam - a de que a forma pela qual o governo neoliberal opera é a de transformar a violência em crime.
Valor: O sociólogo americano Richard Sennett, em entrevista ao Valor, sugeriu valores e práticas capazes de manter as pessoas "juntas", cooperando umas com as outras, neste momento em que as instituições se encontram desacreditadas. De maneira geral, ele entende a vida cotidiana como um "workshop" por meio da qual as pessoas são confrontadas à experiência da alteridade. Essa proposta faz sentido para o senhor?
Birman: Sim, claro que faz. Porque é uma maneira de retirar as pessoas, através dessa proposta de estarem juntos, do seu isolamento narcísico, na sua dor. Conjugá-las no espaço comum, abrir uma perspectiva de conjunto é uma maneira de abrir uma perspectiva de tempo e de uma utopia de uma ordem social outra que não essa miséria contemporânea. Entendo também essa proposta do Sennett como uma tentativa de refundar o espaço social em outras perspectivas que não sejam diretamente ligadas ao campo do trabalho. Da mesma forma como o filósofo marxista italiano Antonio Negri se refere às novas formas de manifestação social e política, como "Occupy Wall Street" e a "Primavera Árabe", que ele chama de "multidão" - diferenciando de "massas" -, no sentido de que as pessoas estão juntas, sim, mantendo as suas singularidades, ou seja, sem apagar as suas diferenças, tal como acontecia na política das massas. Essas novas formas de aglutinação, ou política das multidões, como diz Negri, são tentativas de recomposição do espaço social que visam, sim, uma crítica contundente ao sistema neoliberal.
"Há uma transformação na experiência do sonho, que registramos no plano clínico, uma espécie de dificuldade de sonhar"
Valor: O consumismo, a compulsão alimentar, a "drogadição", entre outros sintomas sociais, também poderiam ser compreendidos como a busca de reconhecimento à qual o senhor se referiu acima?
Birman: Sim, essas são "patologias da ação" ligadas à configuração que assinalei, ou seja, diante desse não reconhecimento das pessoas - expresso por meio da violência -, elas se voltaram, como busca de apaziguamento dessa dor, para o uso de drogas, da comida. Tanto as compulsões alimentares quanto as "drogadições" são tentativas ativas de anestesiar essa dor - ou seja, aquilo que o sujeito está exprimindo por meio da violência - que não ganha reconhecimento.
Valor: O senhor também chama a atenção para o fato de que o sonhar, como experiência desejante, tem cada vez mais perdido a sua relevância, em razão da impossibilidade de o sujeito sustentar o seu desejo. O sonho estaria sendo substituído pela dor sem sofrimento. Podemos ainda falar em sujeito desejante?
Birman: Em primeiro lugar, é importante salientar que o sujeito contemporâneo ganhou - como resultado das transformações às quais eu aludo no livro - configurações que não correspondem mais às configurações clássicas descritas por Freud. Nessa medida, é claro que a globalização é uma experiência ocidental desde os séculos XVI, XVII. Contudo, a experiência de globalização que se dá, a partir dos anos 1970, 1980, é nova, no sentido de que é um atrelamento dos diferentes Estados-nação ao mesmo campo político e econômico internacional, e cadenciou, de outra maneira, as experiências desses Estados-nação. Isso seria o contraponto do que os economistas chamam de neoliberalismo. Desse modo, há uma atualização da experiência social e subjetiva em decorrência disso, e penso que houve uma transformação da relação sujeito-mundo inédita, de forma que algumas características do sujeito, como a relação com o tempo - que está ligada a um traço que marcou bastante a nossa modernidade, que foram as utopias estéticas e políticas -, foram transformadas nesse contexto. Entendo que isso resultou em uma relação da subjetividade com o tempo de outra ordem, que, no livro, eu analiso a partir da transformação da experiência do sonho. Há, de fato, uma transformação na experiência do sonho, que registramos no plano clínico, uma espécie de dificuldade de sonhar ou perda da relevância do sonho como lugar de aparecimento do sujeito em uma experiência alteritária, ligada ao desejo e à utopia. E acho que o sonho, nessa colagem com o real, ganha, cada vez mais, características de pesadelo. No que diz respeito à ideia de sujeito desejante, o problema não é que ele tenha desaparecido. O que eu discuto no livro são os impasses para que essa constituição do sujeito de desejo se faça. Os sintomas como a diminuição da vontade da experiência do sonho, a tendência ao pesadelo, a colagem ao real indicam uma impossibilidade - impasses - de que esse sujeito de desejo se constitua, uma vez que se encontra diante de impasses em face, exatamente, da perda de certos referenciais alteritários, que são condição para que ele se organize. Ou seja, existe um problema, hoje, que diz respeito à constituição do sujeito e advém pela fragilidade dos referenciais alteritários. Assim, como eu disse, com isso o sujeito ganha configurações que não são mais as descritas por Freud.
Os médicos tratam a dor emocional "medicalizando-a, sem ver que existe alguém ferido na sua possibilidade de se expressar"
Valor: Em face do vazio vivido pelas subjetividades contemporâneas, observado pelo senhor, qual seria a função da experiência de dor, que vem preenchê-lo?
Birman: A dor é a resultante da espacialização da experiência subjetiva. A dor sem sofrimento - o sofrimento como uma experiência que implica um lugar de apelo e a possibilidade de uma interiorização simbólica da dor - é uma espécie de êxtase desse espaço, dessa angústia que eu chamo de angústia do real. E é claro que essa dor tem a função de chamar a atenção para a mortificação vivida pelo sujeito.
Valor: Tal como a violência, essa dor sem sofrimento também poderia ser compreendida como "busca por reconhecimento"?
Birman: Sim, claro. Mas não é que o sujeito dê a essa dor uma função de reconhecimento necessariamente e, sim, porque o outro pode entendê-la e transformá-la em apelo. Acho que o psicanalista, de certa maneira, quando atende esse tipo de novo sintoma, transforma a dor em apelo. O que não quer dizer que no campo social essa dor seja entendida dessa maneira nem que os médicos a tratem como apelo. Pelo contrário, eles a tratam medicalizando-a, sem ver que existe alguém ferido na sua possibilidade de se expressar. Toda a medicina contemporânea vai no sentido de espacializar a dor.
Valor: A psicanálise se constitui, então, como um espaço diferenciado, na contemporaneidade. Qual seria a sua função social?
Birman: Sim, a psicanálise, junto com as medicinas alternativas, são os únicos espaços que sobraram onde essa dor pode ser transformada em apelo. O fato é que mesmo que o indivíduo sofrido, dolorido, não demande, o analista toma aquilo como uma espécie de protodemanda. Nesse sentido, a psicanálise tem uma função social importante, hoje, porque se coloca num espaço alteritário.
Giovanna Bartucci, psicanalista, professora doutora em teoria psicanalítica, é autora de "Fragilidade Absoluta. Ensaios Sobre Psicanálise e Contemporaneidade" (ed. Planeta), entre outros


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