Enviada pelo amigo virtual, Grozny Arruda
Grata!
De
volta ao Brasil Grande?
por Jacques Gruman
É
lamentááável ! (bordão do grande humorista, poeta e chanchadeiro Zé Trindade)
Em julho de 2004, visitei Santiago. Fiz questão de conhecer o Palácio de La
Moneda, céu e inferno da experiência socialista de Salvador Allende. Fazia um
frio polar, desses de congelar pinguim de geladeira. No portão, uma guarda
solene recebia os visitantes e fazia uma revista discreta. Afinal de contas,
ali era o local de trabalho do presidente da República. Educadamente, o
sentinela encapotado falou-me alguma coisa que não entendi. De imediato, e por
conta e obra de fantasmas inapagáveis, levantei os braços. Aí aconteceu o
inusitado. O soldado disse-me, visivelmente constrangido, que aquilo não era
necessário, que a situação lhe trazia “lembranças ruins”. Percebi a mancada a
tempo de manifestar-lhe solidariedade. Éramos irmãos atemporais de memórias
sofridas.
Quando Allende assumiu a presidência do Chile, em 1970, a barra andava pesada
na Ilha do Fundão, onde eu cursava engenharia química. Soldados invadiam a
ilha, fazendo arrastões e prendendo a rodo. As engrenagens do terror de Estado
surfavam no apoio da classe média, do Milagre Econômico (arquitetado pelo
“neoprogressista” Delfim Netto, oráculo sinistro da caserna). Naquele ano, o
Brasil ganhou a Copa do Mundo de futebol com uma seleção brilhante e uma
campanha publicitária recheada de clichês patrioteiros. Os 90 milhões em ação
do Miguel Gustavo serviram de trilha sonora para a repressão, a censura e a tortura.
Presos políticos da época contam que os torturadores interrompiam o suplício
para acompanhar as partidas. Patriotadas oficiais escondiam o Brasil real, que
sangrava e estava amordaçado.
O guarda chileno e suas lembranças tristes surgiram das brumas quando vi a
inacreditável campanha que o governo federal acaba de lançar para promover a
Copa de 2014 (http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2013/05/27/campanha-publicitaria-para-a-copa-2014-traz-brasil-como-a-patria-de-chuteiras).
É duro ter aguentado os “ame-o ou deixe-o”, “integrar para não entregar” e
“esse é um país que vai p’ra frente” e vê-los ressuscitados numa retórica
ufanista e debiloide. Reafirmando o mito surrado de que somos o país “da
alegria”, a propaganda passeia pelo patriotismo tacanho e garante que somos
“200 milhões de brasileiros que jogam juntos, acreditam até o último instante e
transformam tudo em paixão”. Usaram recursos públicos para produzir este lixo
de aroma verde-oliva, que não resiste a três neurônios de análise. Chamem o Zé
Trindade !!
Os sábios de Brasília dizem que “o Brasil não vai fazer só uma Copa do Mundo,
vai fazer a melhor Copa de todos os tempos”. De onde tiraram isso ? O que vimos
até agora foi a construção de um colar de elefantes brancos e corrupção a céu
aberto. O estádio Mané Garrincha, em Brasília, teve a capacidade aumentada para
mais de 70 mil lugares, o equivalente a quase 3% de toda a população
brasiliense. As obras do Maracanã, que já havia sido reformado para o Pan de
2007, custaram 50% a mais do que foi orçado no início. Quem vai investigar ?
Quem se beneficia disso ? Après moi, le deluge. A cobertura do estádio da Fonte
Nova, em Salvador, não resistiu a uma chuva mais forte.
O grand finale da peça publicitária é o retorno à pátria de chuteiras. Criada
pelo Nélson Rodrigues em plena ditadura, no estilo reacionário-elegante típico
do grande escritor, a expressão serviu para desenhar uma perigosa cartada: a de
que é desejável que os brasileiros esqueçam suas diferenças e se unam em torno
da seleção nacional. Nada mais conveniente para o general Médici com o radinho
de pilha. Nada mais adequado para qualquer governo em ano de eleição. Nada mais
estúpido e antiesportivo do que o fanatismo por trás de sagradas chuteiras.
Nada mais patético do que as vítimas do arbítrio repetirem mantras dos algozes.
O ufanismo serve a vários senhores. A galvãobuenização do país nutre a apatia,
mediocrizando temas e análises. A megalomania fixa no imaginário popular uma
falsa ideia de potência e cria alvos fantasiosos (“somos melhores e maiores do
que os outros”, que, por consequência, devem se curvar a nós). A lobotomia
propagandística esteriliza a capacidade crítica e torna o povo refém de
interesses não revelados. Quem tem a ousadia de papaguear que somos “200
milhões de brasileiros que jogam juntos” perdeu o rumo e o prumo. Será que
empreiteiros brasileiros jogam no mesmo time dos operários que
construíram/reformaram os estádios e jamais poderão frequentá-los (os ingressos
terão preços inacessíveis à grande maioria) ? Será que os pais e alunos da
Escola Municipal Friedenreich, ameaçada de demolição para facilitar o
escoamento de torcedores no Maracanã, vestem a mesma camisa dos que querem
destruí-la ? Será que o Brasil chegou, meio sem querer e assobiando, à
sociedade sem classes ?
Ainda sobre a pátria de chuteiras, cabe um derradeiro comentário. O futebol,
hoje, não tem nada a ver com aquele que se jogava na época de Nélson Rodrigues.
Virou, como registrei na semana passada, um negócio. A seleção rodrigueana
tinha cacoete local, todos os jogadores atuavam em times brasileiros. A torcida
tinha contato permanente com eles. Assistia aos treinos, via-os aos domingos. O
que se vê hoje é uma legião multinacional, reunida circunstancialmente, para a
qual a noção de pátria passa batida. Capital não tem fronteira, tem interesses.
Longe de ser fenômeno caboclo, virou regra. A bobagem que o governo federal
divulga nas televisões ignora essas mudanças e nos faz retroceder a oba-obas de
triste memória.
Gostaria que isso não passasse de um pesadelo. Amanhã acordaria e, aliviado,
constataria que tudo não passara de imaginação. Bem ao estilo de um maravilhoso
samba de breque do imortal Moreira da Silva, Acertei no milhar (http://letras.mus.br/moreira-da-silva/393251/).
O malandro sonha que ganhou no jogo do bicho, faz planos delirantes e, no
final, descobre que tinha sonhado. Temo, entretanto, que vem por aí uma
avalanche eufórico-nacionalista, com uma parceria amigável entre governos e
imprensa (para isso a PIG será muito útil aos projetos oficialistas ...).
Afinal de contas, dona Dilma pagou o mico de balançar a caxirola e não vai
perder uma oportunidade dessas.
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