Do coração e outros corações

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terça-feira, 11 de junho de 2013

Uma opinião, Turquia

por Daniel Oliveira do blog ARRASTÃO, PORTUGAL

Foto minha (2007): Apoiantes do AKP festejam em Izmir, bastião do CHP, a segunda vitória consecutiva de Erdogan

Nos arredores de Istambul, num gigantesco comício do AKP, de Recep Tayyip Erdogan, não me senti nem no Médio Oriente nem na Europa. Essa ambiguidade é, aliás, a identidade da Turquia. Ao meu lado, havia um casal em que a mulher estava de rosto coberto, apenas com os olhos à vista. À minha frente, uma jovem de classe média exibia os seus cabelos louros pintados e as suas calças justas. É melhor, nesta matéria, não simplificar. Tendo nascido dos movimentos islamistas, o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) não tem correspondência com o islamismo político dos países árabes ou do Irão. Porque a Turquia é sempre um caso à parte. Em Istambul, podemos ver, a passear na rua, mulheres de rosto coberto e drag queens. Há movimentos religiosos fanáticos e uma movida gay. As campanhas eleitorais são semelhantes às ocidentais e a caridade muçulmana também faz o seu trabalho político.

A laicidade do Estado turco não corresponde, nunca correspondeu, a um processo democrático. Foi imposta à força pelo fundador da República Turca Mustafa Kemal Ataturk, de uma forma que apenas tem paralelo com o Xá Reza Pahlavi, do Irão. Tratou-se de um processo de secularização radical forçada de toda a sociedade. Com regras sobre a indumentária, forçando estudantes e funcionários públicos a abandonar roupas típicas do Médio Oriente e a europeizarem-se. Em 1925, foi aprovada a "lei do chapéu", que impunha o uso de chapéus dos "países civilizados". Em 1935 a lei foi estendida ao resto da roupa. A imposição de um novo alfabeto, a reinvenção da história da Turquia, a perseguição à liberdade religiosa e um poder sufocante do exército e de uma justiça dependente do poder político fazem parte da tradição turca que muitos, no Ocidente, confundem com laicidade e democracia. A ditadura (ou democracia musculada) turca, que quando não era de partido único apenas simulou o pluripartidarismo, foi, durante décadas, tutelada pela elite kemalista, baseada num nacionalismo xenófobo, num totalitarismo cultural e num poder asfixiante do Estado. Até aos anos 90, os militares punham e depunham governos. Os tribunais ilegalizavam partidos e impediam candidatos de concorrer a eleições.

A chegada de Erdogan ao poder foi uma lufada de ar fresco. Em dez anos, desmilitarizou, sempre numa tensão perigosa, o regime. Retirou aos juízes o poder discricionário de limitar a democracia turca. Destronou parte da elite económica, umbilicalmente ligada ao poder político. Até as relações com os curdos tiveram, com altos e baixos, se não uma pacificação, pelo menos um pouco mais de moderação, com um forte investimento no Curdistão turco. O que não espanta. Tendo como principal elemento identitário a religião, e não o nacionalismo radical, a ponte era mais fácil de fazer.

Por outro lado, Erdogan modernizou a economia turca. A Turquia viveu, na última década, o seu período de ouro, com um extraordinário desenvolvimento económico. Sendo de direita, conservador nos costumes e liberal na economia, o AKP retirou o Estado da economia de forma socialmente insensível. O que ajuda a explicar uma das partes da contestação de que vai sendo alvo.

Na política externa, Erdogan deu todos os sinais à Europa da sua real vontade, bem maior do que a dos seus antecessores nacionalistas, de integrar a União Europeia. Sinais a que a Europa, em má hora, não respondeu. Ficamos todos a perder: Turquia, Europa e Médio Oriente. Transformou o país, graças à sua melhor relação com as restantes nações muçulmanas, numa potência diplomática incontornável, na região mais complicada do planeta. E até temperou as tensas relações com o vizinho grego.

Mas, acima de tudo, deu sinais de que era possível um movimento islamista transforma-se numa espécie de democracia-cristã muçulmana (paralelo demasiado livre, que me perdoarão). Aquilo que poderia ser um exemplo para a Irmandade Muçulmana, no Egipto, o Hamas, na Palestina e, acima de tudo, o Hezbollah, no Líbano. Estando bem longe das minhas convicções políticas em todos os domínios, o AKP foi, até certo momento, um ator fundamental na normalização democrática da Turquia.

Também é bom ter cuidado quando se fala da oposição institucional turca (os movimentos cívicos são outra coisa). O Partido Republicano do Povo (CHP), o mais importante oponente do AKP, supostamente de centro-esquerda e em tempos partido único, e a extrema-direita nacionalista do MHP, são tudo menos exemplos de respeito pela democracia e pelos direitos cívicos. Muito do que está a acontecer por estes dias aconteceria, com igual ou pior brutalidade, no tempo em que a oposição laica tinha o poder. A cultura kamalista pode ser laica, mais nunca foi, para além da fachada, democrática. O hábito de fazer cair governos através da ação do exército, a repressão da oposição, o regime de partido único e a brutalidade com os curdos está no seu sinistro currículo.

Mesmo o suposto feminismo da oposição deve ser relativizado. As deputadas não podiam usar lenço - houve mesmo uma que foi insultada quando, por sua vontade, o fez. Mas só havia 4% de mulheres no Parlamento. Mais do que os direitos das mulheres, o que estava em causa era o poder kemalista, que abominava qualquer sinal do poder religioso, que o punha em causa. A mesma lógica que levava os nacionalistas a proibir qualquer referência pública ao genocídio arménio e fazia da questão curda um tabu (os próprios curdos não têm direito a esse nome e são, se a memória não me falha, chamados de "turcos das montanhas").

O início desta revolta, no Parque Gezi, foi, claro, apenas o detonador de um mal-estar. Se fosse apenas aquilo, a contestação não se teria espalhado a todo o País, incluindo à menos cosmopolita Ancara e a Esmirna. Mas não podia haver melhor símbolo das contradições do governo de Erdogan: a destruição de um espaço público para construir um centro comercial e uma mesquita. A imposição autoritária da vontade do poder em nome da nova e da velha Turquia. Do dinheiro e da religião. E o esmagamento dos protestos, escondido por uma comunicação social dominada pelo regime.

Este é, se me permitem, o fascínio da Turquia. Não é apenas não ser nem Europa nem Médio Oriente. É nada ser tão linear como parece. É toda sua história recente condensar a sua condição híbrida, numa sucessões de movimentos contraditórios:a secularização da sociedade impôs-se com um Estado forte e militarizado, a liberalização da sua economia foi feita por um governo conservador e religioso. Tudo contradiz as dicotomias fáceis, que põem a liberdade, o mercado e a laicidade, de um lado, e a ditadura, o Estado na economia e a religião, do outro. É sempre tudo mais complicado.

E é essa complexidade que faz com que, nos protestos, se junte a esquerda comunista e a extrema-direita nacionalista. Movimentos de tipo "ocupa" e islamistas. Porque a questão da islamização é apenas uma pequena parte do problema. Se quisermos, é apenas a velha parte do problema.

Parece existir uma confluência de agendas - direitos sociais, liberdades cívicas, pressões sobre a comunicação social, concentração de poder, resistência à islamização do País, perda de influência externa evidenciada pela guerra civil na Siria. Também pesará o cansaço (mesmo na base de apoio do AKP) com um poder quase absoluto, que venceu três eleições consecutivas e para o qual a oposição política, demasiado heterogénea, não consegue encontrar alternativa.

Mas a questão central parece ser, antes de tudo, aquilo a que o analista político turco  Bülent Kenes, citado por Jorge Almeida Fernandes, no "Público", chamou de "intoxicação do poder". Entre os muitos sinais de arrogância, está atentativa de rever a Constituição para transformar a Turquia num regime presidencialista, garantindo assim, depois da candidatura de Erdogan à Presidência, a perpetuação do seu poder pessoal, o que ajuda a explicar algumas dissensões internas no próprio AKP. Em defesa dos direitos dos manifestantes tem estado Abdullah Gül, Presidente eleito com o apoio do AKP, no poder. Mandou retirar a polícia da Praça Taksim e deixou recados ao governo. Também o número dois do governo, Bülent Arinç, pediu desculpa à população pelos erros do Governo nesta crise. Mesmo assim, e é importante ter isso em conta, o partido de Erdogan continua popular nas sondagens. Parece haver uma maioria silenciosa para quem estas manifestações e os abusos que as justificaram dizem pouco.

Mas mesmo a indignação com os abusos de poder, num país que vive com eles desde sempre, é sinal de que a Turquia mudou na última década. O poder do AKP, que esmaga sem dó nem piedade os protestos que o contestam e tomou conta de todo o aparelho de Estado, acabou, ao desestruturar o poder militar e a tradição centralista e antidemocrática kemalista, para garantir o seu próprio domínio da vida política e social turca, por criar as condições para que os seus próprios abusos não fossem tolerados.

Quem veja na Turquia uma continuação da "Primavera Árabe" só pode ficar mais baralhado. O que está a acontecer na Turquia são, em simultâneo, as dores crescimento de uma democracia; a resistência aos abusos de quem conseguiu garantir para si, graças a essa democratização, um poder quase absoluto; os conflitos que uma sociedade cada vez mais capitalista naturalmente vive; e, em simultâneo, a velha tensão entre uma laicidade radical e o islamismo político.

Mas, acima de tudo, de forma violenta e extraordinária, a Turquia está a mostrar que mudou. Não mudou apenas por causa de Erdogan. E mudou mais do que Erdogan queria. Mas essa mudança, onde ele desempenhou um papel central, faz com que o próprio Erdogan não possa governar como gostaria. As manifestações e a sangrenta repressão que se abateu sobre elas podem fazer parecer que a Turquia está a recuar. É, na minha opinião, exatamente o contrário. Ela está a avançar. Com sofrimento e de forma confusa. Como é sempre a mudança. E é essa mudança que travará a brutal repressão que Erdogan, intoxicado pelo poder, impõe aos que lutam pela democracia plena.

Publicado no Expresso Online

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