Enviado por G. Arruda
Grata!
Na
mesma lata de sardinha
Do
ônibus velho ao BMW zero, todos são prisioneiros do congestionamento
e
das pressões das grandes cidades
por Carlos Lessa — publicado em Carta
Capital - 28/06/2013
A
qualidade da vida urbana é um ingrediente-chave na vida da maioria das famílias
brasileiras. Com 80% de nossa população urbana e 50% metropolitana, são
variadas as dimensões definidoras dessa qualidade. Entre essas dimensões, ocupa
um lugar-chave a questão da mobilidade. De forma simplificada, podemos dizer
que cada integrante da sociedade urbana dedica ao trabalho ou atividade
remunerada um terço das suas 24 horas diárias.
Outro
terço é usado para dormir. Sobram oito horas diárias para todas as demais
atividades que não a obtenção de renda monetária, isto é, para as atividades
ligadas à fisiologia individual, à convivência e lazer com amigos e família, a
compras e, por vezes, ao aperfeiçoamento cultural e profissional. Ao menos em
tese, cada um é soberano em relação a este tempo de existir.
O
tempo de existir é essencial e universalmente afetado pelos deslocamentos
residência-trabalho-residência. Para quase todos, o tempo gasto nos
deslocamentos é monótono, angustiante e, de certa forma, jogado fora, o que
aponta para a óbvia importância da malha urbana, dos serviços de transporte
público ligados ao deslocamento pela malha e à organização, tipo, quantidade e
modalidades de utilização de veículos de transporte de pessoas e mercadorias.
Mesmo quando o habitante que se desloca a pé em direção ao trabalho ou
atividade, muitas vezes é obrigado a fazer outros deslocamentos que dependem da
mobilidade urbana. Se o cidadão urbano, notadamente o pobre, tiver necessidade
de horas adicionais no trabalho, é mais punido.
No
Brasil, cresceu de forma explosiva a população de veículos automotores. Creio
que, no Rio, andou próxima a 10% ao ano; em Brasília, por mais de uma década,
cresceu cerca de 15% ao ano. Taxas parecidas foram vivenciadas nas demais
cidades, inclusive nas médias. É o resultado de uma política míope que
privilegiou, no combate à inflação, o corte do investimento público e, para
sustentar a atividade econômica, facilitou e estimulou um intenso endividamento
familiar. A opção governamental por estimular a venda de veículos – houve
momentos em que a entrada zero foi combinada com o pagamento em 90 prestações –
possibilitou à indústria automobilística um céu de brigadeiro nesta última
década, porém o “nanismo” e a hipertrofia míope e de curto prazo do
investimento na cidade engendrou o caos.
Muitos
festejaram o acesso ao veículo automotor próprio, ignorando o custo do
combustível, da manutenção e da fiscalidade associado ao “patrimônio” da posse
do veículo. É comum a família endividada, pressionada pelos custos, deixar o
veículo próprio estacionado e voltar ao péssimo transporte público. O pior
acontece quando quer vender o veículo já usado e descobre que o mercado de
segunda mão não paga sequer o correspondente à dívida residual. Por outro lado,
o congestionamento tem uma dimensão universal, que incorpora desde o ônibus
velho ao BMW. Somente escapa o arquimilionário que tem heliporto na residência
e no escritório. Todas as faixas etárias e níveis de renda são incomodados pela
degradação da qualidade de vida. Este pano de fundo tem tudo a ver com o início
das manifestações.
O
aumento das tarifas de transporte coletivo urbano foi gota d’água que produziu
uma metamorfose espetacular.
Uma
novíssima geração de brasileiros foi para as ruas protestar e se situar como
sujeito que faz história. O paradigma das antigas mobilizações foi
estruturalmente modificado com a rapidez do uso de redes sociais. O tradicional
“correio” boca-a-boca e alguma liderança convocatória não explicam a
velocidade, intensidade e espacialidade com que o aumento tarifário se
transformou num fenômeno político de massa que, rapidamente, preencheu um
primeiro ato com uma gigantesca lista de rejeições, reclamações, sugestões e
reivindicações. Sem a pretensão de interpretar esse fenômeno, quero colocar
algumas questões para reflexão.
A
questão urbana inspirou toda uma pauta que se iniciou no transporte e se
encaminhou para os serviços de saúde, educação e segurança. A corrupção foi
colocada como variável explicativa, e a pauta transbordou, colocando sob
acusação o sistema de partidos, as representações políticas e algumas
instituições públicas mais visíveis. A pauta cresce e tende a se diversificar.
Lendo os cartazes, é possível perceber ânimo, ironia, amor, desinformação etc.
É
surpreendente e sintomática a rejeição da ideia do “circo” substituindo o
“pão”. O futebol, alegria do povo, foi colocado entre parêntesis. Desde a
mutilação do Maracanã, no Rio de Janeiro (a reforma custou 1,2 bilhão de reais
para reduzir à metade o número de lugares) passando pelo Mané Garrincha (que,
em Brasília, foi iniciado com orçamento de 650 milhões de reais e custou 1,4
bilhão de reais) e com os demais estádios das cidades brasileiras sendo
convertidos em “casas de ópera” (onde o povo brasileiro não pode mais torcer em
pé e o povão terá que pagar uma entrada cara e proibitiva), cristalizou-se,
pela visibilidade e interesse do povo brasileiro pelo futebol, a dimensão de
corrupção (provável) e subserviência à FIFA. O governo brasileiro abriu mão de
sua soberania, ao autorizar a venda de bebida alcoólica à minoria que pode
pagar ingresso; atropelou o espaço urbano atendendo à exigência da FIFA de uma
circunferência de isolamento de três quilômetros em torno de cada estádio
utilizado nos jogos da FIFA (essa exclusão foi anunciada pelo Ministério do
Planejamento, quando propôs feriado no período dos jogos da FIFA, a partir da
pergunta de como ficaria o congestionamento). O povo leu tudo isso como um
imenso “conto do vigário”, que macula a paixão pelo futebol com renúncia à
soberania e pretexto para processos de corrupção. O povo formou uma grande
“torcida” participativa.
Sei
que muitos manifestantes tem uma reflexão própria bastante amadurecida, e é
interessante observar os “diálogos” dos cartazes, por exemplo: ao lado de um
cartaz que diz; “imposto zero”, está outro outro que diz “mais verbas para a
educação e saúde”. Os cartazes, em uma sociedade televisiva, são feitos e
empunhados por muitos manifestantes com a óbvia preocupação de serem captados
pela lente do fotógrafo e da televisão. Ilustra isso um cartaz em português e
inglês, cujo autor afirmou que, assim, tinha maior probabilidade de ser captado
pela TV internacional (o “eu”, corporificado no cartaz, está aqui; eu existo!).
Estou
certo que haverá o debate e prevalecerá a vontade política da maioria. Estou
certo que estas manifestações são apenas a primeira voz que apontará para um
projeto nacional. Sei que esta é a provável evolução da novíssima geração de
atores políticos brasileiros. A preliminar do “eu” tende a constituir o “nós”.
Este resgate da participação pública, desde o início, está acompanhado pelos
símbolos da nação: bandeiras, hinos, músicas. A manifestação, no sentido
operacional, é majoritariamente, uma “torcida” pelo Brasil, e tem uma
componente saudável de festividade, como a linda a manifestação dos pais com
seus bebês. É deslumbrante ver gente espontaneamente fornecendo comida
para os jovens que estavam acampados exigindo o diálogo com o Governador Sérgio
Cabral, e também para os guardas que ali estavam bloqueando o acesso. Há um
simbolismo na vinda de manifestantes da Rocinha com cartazes dizendo “queremos
melhor ensino e saúde na comunidade” e “dispensamos o teleférico”.
Como
velho professor, estou encantado em ver a novíssima geração representar nossa
gente. Sou da geração que abriu os olhos políticos com o suicídio de Vargas e a
campanha “O petróleo é nosso”; militei pelo novo Estado de direito desde o
exílio e até a Constituição de 1988, e assisti sua mutilação por mais de 50
Emendas Constitucionais. Não aceitei o Consenso de Washington. Vi a ideia da
“globalização” ser vendida como ensina um velho provérbio turco: “se quereis
vender um corvo, pinte-o rouxinol”.
Tenho
confiança na acelerada pedagogia das manifestações. É acelerada a educação
política dos manifestantes. Um povo que se manifesta, no limite, tudo pode;
transporta, dentro de si, um futuro melhor. Dentro do coração de cada
manifestante há a potencialidade da civilização brasileira. Este é um passo
decisivo para a periferia do mundo e o início de uma modificação significativa
das relações geopolíticas do Brasil com a hispanoamérica e com a África. Um
gigantesco passo para a história brasileira foi ensaiado com as manifestações
convocadas pela má qualidade da vida urbana.
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Carlos Lessa é ex-reitor da UFRJ e ex-presidente do BNDES
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